Crónicas Matinais

[ sexta-feira, agosto 20, 2004 ]

 

Ora bem:

Caro Jorge Palinhos, não devemos pedir desculpa quando se pretende discutir um assunto; fico até muito satisfeita pelo interesse demonstrado, até porque o assunto é muito importante.
Pretendo responder-te, ponto por ponto, e com toda a frontalidade e sinceridade.

Primeiro: É verdade que há ataques a judeus da responsabilidade de grupos de jovens magrebinos e eu admito que possam ter "motivações". Mas nunca os entenderei, aos ataques, e muito menos os desculparei. Mas esse argumento que apresentas , o das dificuldades económicas, tem peso. Mas antes de mais deixa-me dizer-te uma coisa, que já saberias se tivesses lido, por exemplo, o que tenho escrito , aqui no blog , sobre o assunto [ tens os links , se quiseres ler, no post anterior, no blog Contra a Corrente do MacGuffin ; eu agora não tenho tempo para ir procurar os links, desculpa ] , eu acho que a discriminação contra um judeu, um africano negro, um cigano , um muçulmano ou um árabe , é a mesma.
Alguém que descrimina alguém só porque ele que é diferente de si, é um filho da puta sem qualquer tipo de direito a ser respeitado.
Ou seja: a mim custa-me ver um negro, um árabe, um muçulmano, um romeno , etc, não conseguir arranjar um emprego, aqui em França, só porque é negro, árabe, muçulmano, romeno, etc.
Custa-me da mesma maneira ver um judeu a ser cuspido na cara só porque é judeu.
A revolta de que falas é justa. Mas o que eu tenho dito sobre o anti-semitismo em França não tem a ver com isso.
Já agora aproveiro para te explicar isto: um judeu ocidental , ao contrário dos outros irmãos já citados, não é diferente, fisicamente ( cor da pele ), de qualquer outro branco ocidental. E quando vai pedir emprego, a não ser que lhe perguntem a sua religião e isso,grosso modo, é ilegal, não é discriminado. Se for um judeu árabe , aí sim, é discriminado seguramente. Os ortodoxos , os que ostentam ( roupa que usam ) a sua religião no dia a dia, esses só trabalham com outros judeus. Normalmente em negócios próprios. Todos os outros são, aos olhos da sociedade de merda que temos, brancos e, como tal, não são discriminados.
Ou seja, no que ao emprego diz respeito, a religião nada tem a ver, a não ser no caso dos muçulmanos árabes, justamente porque têm uma cor de pele escura. A primeira discriminação é, então, a cor da pele. Nada de novo, é igual em todo o mundo ocidental. Fomos nós, os brancos, que inventamos essa maneira asquerosa de separação.

Segundo: Tu perguntas-me se não concordo que « afinal, é mais fácil libertar o ódio sobre um bode expiatório específico do que contra um mal-estar ou um ambiente indefinido».
Posso admitir que seja assim, mas concordar nunca. Porque isso é, de uma forma muito clara, justificar qualquer ataque; justificar a violência.
É obvio que os árabes não são, por norma, terroristas! É obvio que nem todos os muçulmanos, árabes ou não, são fundamentalistas!
Mas, repara bem, como há mais casos de terrorismo a envolver árabes e muçulmanos , as pessoas , infelizmente muitas, têm a mesma maneira de pensar que tu. Calma, eu explico: as pessoas pensam «, afinal, é mais fácil libertar o ódio sobre um bode espiatório específico do que contra um mal-estar ou um ambiente indefinido, não achas? »
E, tal como tu, e cheios de boas intenções, as pessoas acham que sim.
E é por isso que demonizam os árabes e os muçulmanos e isso provoca a escalada da violência.
Porque eu, se fosse árabe ou muçulmana, ou as duas coisas, não admitiria nunca que me discriminassem ; que me acusassem de ser terrorista.
Agora, a diferença é que esses jovens que são discriminados por serem árabes/ muçulmanos, não se escondem e não ficam em silêncio. Eles batem-se - geralmente da pior maneira - e cerram fileiras entre eles para lutar contra todos aqueles que eles acham que os discriminam.
A isto junta-se uma política desastrosa no Médio Oriente, que esses jovens escolhem como causa, e é o caos.
Repara: não há um único caso de uma agressão de um judeu a um árabe ou a um muçulmano.
E sabes porquê? Porque a violência não faz parte da cultura dos judeus. Pode fazer parte da estratégia política dos senhores da guerra como o é, sem dúvida, Ariel Sharon, mas não faz parte dos judeus. Ariel Sharon, se não fosse militar e não tivesse como objectivo primeiro fazer sobreviver o Estado e o Povo Judeu, faria seguramente o que os outros judeus fazem: pedia a D-us que o deixassem viver em paz e não levantava ondas de maior.
Qualquer ataque que apontes ao lado judeu é militar , é represália. Uma resposta a um ataque, compreendes a diferença?
Não há ataques gratuitos. Não há, nunca houve e nunca há- de haver.
Não justifica a morte dos civis palestinianos, claro, mas tem uma razão militar , política e de sobrevivência. Não são os judeus que usam o seu próprio povo como escudos humanos, como "mártires". O objectivo é garantir a sobrevivência ao povo de Israel. E, todos o sabemos, a guerra foi justamente inventada para isso. É triste mas é verdade.
Ora, no Médio Oriente, e falo em termos de ataques militares, os terroristas árabes do Hamas, etc, usam o seu próprio povo para ganhar simpatias internacionais e, para ganhar cada vez mais simpatias, mostram -quase com orgulho- pedaços de carne, corpos ensanguentados e todo e qualquer cadáver. É desonesto, mas resulta.
Diz-me: quanto sangue, quantos rostos sem viva, já viste do lado de Israel? É a diferença ; a grande diferença. Israel não usa as suas vítimas . Não usa o seu povo. E penso que ninguém dúvida - o negacionismo não pode ir tão longe!- que há milhares de vítimas entre o povo de Israel. Todos conhecem os famosos atentados kamikazes em autocarros, cafés, Sinagogas, etc. Mas as vítimas, para os judeus, merecem respeito. Não são para ser exibidas como troféus de caça, compreendes?
Só que nas nossas televisões, as imagens dos corpos dos civis palestinianos são usadas até à exaustão. E do luto, passa-se à raiva. É humano.
Mas é um sofrimento formatado e fabricado. Tu,( espero eu ) se vires, por exemplo, um assassino Tutsi a ser torturado, mesmo sabendo que ele matou centenas de seres humanos, tens pena. Porque isso é humano. Quando um assassino - talvez o maior de todos no Médio Oriente - é morto - numa acção de guerra limpa- cai o carmo e a trindade, porque, coitadinho, o senhor é velho e deficiente, até andava de cadeirinha de rodas...
Mas a explosão de autocarro carregado de crianças israelitas não provoca a mesma indignação da comunidade internacional...

É o relativismo moral que me choca.

Os judeus nunca educam as crianças numa cultura de violência, podes vê-las a rezar, podes vê-las a brincar...mas nunca as poderás ver de kalasnikov na mão.
E os meninos palestinianos são vistos, mais facilmente, com uma AK-47 , do que a rezar ou a brincar.
Dirás: mas os meninos palestinianos não tem nada para brincar , não têm comida, casa, os pais não tem emprego, são muito pobres.
Terás razão. Mas, garanto-te, mesmo na maior das misérias ( pensa em África, na India ) , as crianças podem ser "poupadas" à violência. Se lhes deres liberdade elas brincam, mesmo cheias de fome e doentes [ um dia posso contar-te como é que as crianças timorenses, angolanas ou ruandesas sobrevivem na diversidade , não vi na TV, fui lá vê-las! ]
Mas se as ensinares a matar, e se as mandares atacar - seja com pedras, seja com armas, seja com explosivos - o destino dessas crianças fica traçado e já não tem volta.
É a cultura da violência a qualquer preço. Quando assim é , o diálogo é difícil, se não impossível.

Voltando a França: esses jovens de que falas , mesmo não tendo sido educados a servirem-se da violência em vez da razão, compadecem-se com esses meninos soldados, e sem lhe passar pela cabeça a possibilidade de os meninos serem soldados por opção, e não por necessidade, chamam a si também essa cultura da violência.
Mas como vivem num pais democrático, que os discrimina, é certo, mas os alimenta e lhes dá casa, dinheiro e cuidados de saúde, esses jovens deixam de ter de lutar pela sua própria sobrevivência, e resolvem lutar - em nome, quiçá, de um orgulho de «raça» - contra quem eles consideram serem os inimigos mais acessíveis e até históricos.
Mas não vão morder totalmente a mão que lhes dá o pão, i.e., os franceses, porque esses têm o poder de os prender e de parar de lhes dar dinheiro. Vão antes atacar os judeus.
É já tradição e, assim como assim, quase ninguém se importa.E, além disso, sabem que não serão atacados de volta.
Estás a ver o filme?

Terceiro: Perguntas-me se acho realmente se o anti-semitismo é, em França, a mais grave forma de racismo que existe.
Corto-te já a pergunta dizendo-te que , para mim, toda e qualquer forma de racismo é igualmente ignóbil e grave. Sem excepção.
Seja um árabe em relação a um judeu; seja um judeu em relação a um árabe; seja um branco contra um homem de qualquer outra cor ou vice-versa.
E é justamente por pensar assim, que me irrita que se justifique uma forma de racismo , porque se a compara a outra que se julga mais grave.
É igual. A gravidade é igual.
Só que , como humana que sou, e porque sei que não posso mudar o mundo, o racismo que sinto no meu próprio corpo e alma ,faz-me falar e sentir mais.
E porque , quer admitam quer não, nunca nenhum outro povo - na sua totalidade - foi alvo de um processo de exterminação organizada. Que eu saiba , e mesmo sentindo dor ao pensar nos massacres étnicos que ainda hoje - à hora em que escrevo- acontecem em África, por exemplo, nenhum inimigo construiu câmaras de gás e meteu lá milhões de corpos , a maioria ainda vivos, para reduzir a cinzas; até para fazer sabão.
Os ocidentais , como os portugueses, os ingleses, os holandeses, os franceses, etc, cometeram milhões de assassinatos na senda dos descobrimentos, mas, que diabo!, alguns tentaram ajudar; misturaram-se; fizeram filhos e, tirando o caso dos aborígenas na Austrália e dos Índios na América, a violência foi superada pelos maravilhosos mundos e povos novos que daí surguiram.

Nunca outro povo foi marcado para morrer como única opção. Até os assassinos indonésios em Timor-Leste, pretendiam conquistar timorenses para as suas fileiras, dizimaram a maior parte, é certo, mas o objectivo principal não era esse, era torná-los indonésios. Os que resistiam morriam, mas os que se aliavam a eles ( por opção, mas especialmente por medo e espírito de sobrevivência ) tinham pelo menos o direito a existir.
Parece cruel o que escrevo, mas é a pura verdade: aos judeus nunca foi oferecida qualquer possibilidade de sobrevivência. E não me fodam com :« esquece, foi há muito tempo». Muito tempo???? Desde quando 60 anos é muito tempo? É provavelmente a idade dos teus pais, dos meus, de alguns do que agoram nos estão a ler.
Foi ontem, caramba! E não pactuarei para que volte a ser hoje!

Quarto: A rapariga que inventou a história do ataque anti-semita não é judia. É fundamental que não te esqueças disso. Faz toda a diferença. Agora, essa tresloucada sabia que iria ter mais atenção se transforma-se o caso num caso de anti-semitismo precisamente porque como há tantos, ninguém iria duvidar, percebes?
Sobre o caso do jovem árabe atacado a golpes de machado , aí sim, tens toda a razão. É um caso demasiado grave para ser esquecido. Mas , perdoa-me a crueza, não pelo ataque em si, mas pela justificação do sucedido. Calma ,eu explico: O homem que atacou o jovem confessou que odiava todos os árabes!!! É gravíssimo. Depois de o atacar foi vandalizar um cemitério judeu que, tens razão, mereceu mais honras mediáticas.
Um tipo que confessa que odeia todos os árabes e ataca um com um machado merece totalmente a pena que incorre: prisão perpétua!
Eu rezo para que ele seja condenado a prisão perpétua, já que aqui, desde os anos 80, não há pena de morte. Não tenho problema moral nenhum em o afirmar.
O problema com esse ataque é que aconteceu depois de um jovem de 15 anos, francês, ter sido assassinado ,em Avignon, também com golpes de machado, por um jovem árabe.
Ora, a imprensa aqui é chauvinista, todos o sabemos, e o caso do jovem francês foi de tal maneira chocante ( o rapaz recusou um cigarro, porque não fumava e não tinha tabaco, a esse jovem e ele deu-lhe duas machadas na cabeça e fugiu com a mota da vítima, e tudo se passou em 45 segundos ) que qualquer outro caso , e ainda por cima envolvendo um árabe, deixou de merecer importância.
Claro que está errado.Têm ambos os casos a mesma importância, em termos de essência.
Mas como o ataque racista não provocou morte, e o outro provocou...
Enfim. Não pretendo defender a imprensa francesa, eu também a condeno e firmemente.Explico-te é as circunstâncias .


Quinto: A natureza do racismo francês em relação aos árabes e em relação aos judeus é diferente.
Em relação aos árabes , e no que à actualidade diz respeito, o racismo e a discriminação tem como base o comportamento , não da comunidade, mas essencialmente de muitos dos jovens.
Vivendo, como vivem, nas cités, nos bairros sociais, são mais inconformados. E unem-se, juntam-se em bandos e grupos e facilmente se criminalizam. Assaltam lojas, roubam carros ou incendeiam-nos; agridem as pessoas, especialmente nos comboios; partem tudo por onde passam; e fazem-no com (quase ) total impunidade.
Como actuam em bando, são mais fortes , e ninguém tem coragem de os enfrentar. Mesmo a polícia evita esses confrontos. É comum um desses bandos entrar num comboio , assaltar e até agredir alguém, sem que ninguém levante um dedo.
Há bairros onde ninguém tem coragem de entrar, e há zonas onde é praticamente impossível viver, a não ser que se seja árabe.
isto, meu caro, é uma constatação.
É um fenómeno que não é original, já que o mesmo se passa, por exemplo, nos bairros negros dos EUA. O cenário é o mesmo: discriminação que gera descontentamento, que por sua vez gera espírito de vingança, que por sua vez gera violência. O eterno ciclo vicioso.Nos últimos tempos, a questão do terrorismo também ajuda a que os árabes e os muçulmanos sejam mais discriminados, claro.

Já o racismo em relação aos judeus tem uma natureza quase que epidérmica.
Senão vejamos: a comunidade judaíca - novos ou velhos - não se junta em bandos para agredir outros cidadãos; não promove qualquer tipo de violência, nem contra terceiros, nem dentro da própria comunidade; não vive às custas da segurança social ; os mais novos todos trabalham , ou estudam, e pagam impostos porque têm rendimentos. Não ameaçam nem brancos, nem castanhos, nem negros, nem amarelos, nem azuis às riscas. Não se viram contra quem os discrimina. É uma comunidade discreta , que , grosso modo,pelo menos entre os ortodoxos, se vira para si própria e não chateia ninguém.

Agora diz-me: que razões terão os árabes , os muçulmanos e os franceses em geral para discriminar os judeus?
Não as há. E é precisamente por não as haver que é assustador.
É porque trabalham duro e, consequentemente, têm dinheiro? É porque têm como filosofia de vida o saber e, consequentemente, chegam longe em termos académicos e intelectuais e cientificos?
É porque gostam de música e, consequentemente, muitos têm brilhantes carreiras no sector?
Porquê?
Apenas porque são judeus...não é?

Pois isso , que já conhecemos de outras décadas, já levou à exterminação de milhões de judeus. Não me peças para ver a história a repetir-se e baixar os braços.
NUNCA MAIS!

Espero ter respondido às tuas perguntas. Mas estou sempre disposta a conversar.E desculpa o "testamento" mas ou escrevo tudo ou não escrevo nada. ;)

Um abraço e Shalom!

[Malta: ainda não foi hoje que desanuviei o blog...lamento. Seja como for, sempre arranjo forças para dizer que descobri o nome mais erótico ( porque envolve partes íntimas ) destes Jogos Olímpicos Atenas 2004. É o jogador nº 7 da selecção grega de basquetebol. Chama-se Dimitris PAPANIKOLAOU , e a mim faz-me rir. ]

Ana [8/20/2004 10:00:00 da manhã]